Você não é a sua mente, essa voz que sopra conclusões pensantes. Você é o seu umbigo – as tripas reagindo ao mundo e ao medo de morrer. “O umbigo é a sede da consciência emocional”, explica o xamã Rudá Iandé, na casa rodeada por mata atlântica em que vive em Campo Magro, na região metropolitana de Curitiba.
É uma ilusão acreditarmos que somos racionais. Por mais que você reflita sobre suas emoções, não é capaz de controlá-las. Elas obedecem a uma lógica própria. O mesmo acontece com a soberania do corpo, que coordena de maneira tão incrível nossos processos vitais.
Rudá Iandê
Há mais de 25 anos, Rudá investiga maneiras de acessar em si mesmo, e em outras pessoas, as dimensões profundas do corpo e das emoções. Rudá acredita que, quanto mais desconectados estamos de nossas inteligências corporais e emocionais, mais ativa e ruidosa nossa mente se torna. “Autoconhecimento não é a intelectualização do ser, é estar plantado em sua própria natureza, alinhado com seu instinto. As rotas de acesso a essa sabedoria não são verbais”, diz.
Nascido em Belo Horizonte, Rudá se perdeu (ou se encontrou) pelo Brasil com uma trupe de ciganos aos 17 anos. Investigou tarô, cristais, numerologia, meditação e fitoterapia. “A intensidade com que me joguei nesta busca não convencional pelo conhecimento não foi muito bem recebida na época. Minha família, com razão, temia pela minha sanidade e pelo meu futuro. Por isso, desde muito cedo eu já tinha que me virar por conta própria.” Ele viajava em busca de cristais, comprava e revendia as pedras em lojas esotéricas.
Em 1992, durante a Eco-92 no Rio de Janeiro, conheceu a ayahuasca – o chá indígena feito a partir da combinação de cipó mariri e folha de chacrona. “O primeiro contato foi em uma cerimônia de Santo Daime. Tive vontade de aprofundar minha relação com as plantas, mas queria me afastar daquela ritualística. Resolvi me lançar na floresta, beber da raiz”, conta.
Ele morou por dois anos na Amazônia, onde conviveu com as tribos indígenas katukinas e yawanawas. Seguiu viajando e trocou experiências com raizeiros do cerrado, pais de santo do Nordeste, xamãs quéchuas do Peru, brujos do Chile e peioteiros huicholes do México.
A vida das plantas
Rudá acabou desenvolvendo sua própria linguagem de interação com os efeitos das plantas e com a cultura xamânica, que explora a possibilidade de acessar as diferentes dimensões de consciência. “As plantas têm a capacidade de nos mostrar aspectos da realidade que colocam em xeque conceitos cristalizados que temos a respeito da vida. Durante as cerimônias com a ayahuasca, entramos em um transe que cessa o caráter controlador da mente”, diz.
Em 2006, fundou em Campo Magro o Centro de Estudos Ancestrais Raízes de Dan – um extenso terreno de 13 mil metros quadrados de muita mata atlântica. “Desenvolvo aqui, junto com Denise Maia, minha mulher, uma linguagem que mistura as tradições de orixá e ayahuasca. As plantas substituem o sangue de animais que, em cerimônias como as do candomblé, funcionam como veículo de conexão com outras dimensões. Alcançamos o contato com os orixás através da ayahuasca”, explica.
No meio da mata, Rudá e Denise preparam dezenas de litros do chá. Raspam o cipó para tirar as cascas, limpam as folhas uma por uma. Em um ritual exaustivo, o cipó é batido por mais de uma hora e, em seguida, vai para a panela. O extrato desse primeiro cozimento se mistura com a folha para mais duas ferveções no fogão. Enquanto a bebida borbulha, Rudá influencia o poder da ayahuasca com seus cantos e rituais. “Cada preparo leva um tempo diferente para ficar pronto, a própria ayahuasca determina a hora de parar.”
Os chás são engarrafados e cuidadosamente armazenados em uma pequena sala que o xamã chama de biblioteca. Alguns dos vidros têm marcações especiais que indicam suas especificidades. “Esse em que está escrito elixir é o extrato só do cipó, um dos energéticos mais poderosos que existe”, explica. “O cipó tem uma força mais masculina, enquanto a folha é ligada ao feminino. É a energia que vai gestar o espírito da ayahuasca. Produzimos também o extrato só da folha, que lida diretamente com nossos sonhos”, explica.
Em vidros menores, estão poções fitoterápicas feitas com uma imensa variedade de plantas. “A medicina da floresta é muito vasta e cheia de influências. Alguns desses vidros precisaram ser enterrados antes de virem pra cá, na lua nova ou na lua crescente, dependendo do objetivo.”
Xamanismo moderno
Os métodos de Rudá – um xamanismo moderno e conectado com o mundo contemporâneo – atraíram o interesse de muitas pessoas, mas uma delas em especial trouxe bastante visibilidade para o xamã: a performer sérvia Marina Abramovic.
Em 2010, a artista enfrentava um período obscuro da vida e, por indicação de uma amiga, visitou a chácara de Rudá e Denise em Campo Magro. Em seu livro Pelas paredes: memórias de Marina, publicado no Brasil este ano pela editora José Olympio, a artista define a experiência – que envolveu basicamente conversas e massagens – como um exorcismo da dor.
Cerca de um ano depois, Marina voltou a Campo Magro para um novo encontro com o xamã, dessa vez acompanhada da equipe de filmagem do longa Espaço além – Marina Abramovic e o Brasil, que registra uma série de encontros da sérvia com forças espirituais brasileiras. “Da primeira vez que ela veio já queria tomar a ayahuasca, mas não estava pronta. Tinha dores fortes do corpo, precisava primeiro cuidar do próprio âmago. Só nessa segunda visita é que fizemos a cerimônia”, conta Rudá.
O interesse de uma estrangeira não o surpreendeu. Quase 70% das pessoas que visitam e são atendidas por Rudá não são brasileiras. “Não sei explicar o motivo disso, mas percebo que muitos países socialmente mais evoluídos que o nosso enfrentam em paralelo uma perda grande na individualidade e acho que é essa reconexão consigo mesmo que as pessoas buscam aqui”, acredita.
Há mais ou menos um ano, Rudá formatou o programa Primal Source, em que acompanha por 12 meses pessoas dispostas a buscar autoconhecimento – já não há mais vagas para o ano que vem. Uma das etapas do processo consiste em uma semana de longas caminhadas pelos Lençóis Maranhenses. “A paisagem é areia e água, tem pouca informação. O lugar vai te meditando, a natureza te absorve. No fim da jornada o corpo e a mente estão alinhados e aí, sim, fazemos a cerimônia com a ayahuasca”, conta.
“Não podemos esperar que um conhecimento que se aplica a uma aldeia indígena vá funcionar para pessoas que vivem em cidades como São Paulo ou Nova York, a essência dessa medicina precisa de uma nova linguagem, não pode simplesmente ser reproduzida.”
Rudá não se afasta da tecnologia em suas práticas. Ele tem um perfil no Facebook que usa para conversar com os amigos distantes de Campo Magro (inclusive com pajés na Amazônia) e em que compartilha conteúdos que considera relevantes – e um meme ou outro de vez em quando. “É uma fase mágica da humanidade nesse sentido, muitas possibilidades de comunicação se abriram e isso é maravilhoso”, diz.
Pense negativo
Ele também tem experimentado usar a internet para publicar artigos, em parceria com o Huffington Post norte-americano. No mais recente, explora o lado sombrio da filosofia que prega o pensamento positivo como um caminho para a felicidade. Ignorar, ou pior, reprimir as emoções “negativas” não parece ser uma boa ideia. Antes disso: separar as sensações entre positivas e negativas é que não é uma boa ideia. “Estar vivo tem como consequência o despertar de todas as emoções – entre elas raiva, tristeza, medo. Negar essa parte da nossa experiência é comprar uma guerra perdida contra a essência humana”, diz.
Desejar uma existência asséptica nos consome energia e não traz nada de volta além de frustração e ansiedade. Ele propõe o contrário: projete o pior cenário. O que apavora você. Se estivermos sempre fugindo do que existe de sombrio em nós, não estaremos nunca tranquilos. E não exercitar a compreensão de nossas próprias contradições dificulta – ou inviabiliza – a compreensão das diferenças dos outros em relação a nossa visão de mundo.
Se reprimimos em nós o que consideramos “negativo”, e esse conceito muitas vezes coincide com o que é selvagem, instintivo, agressivo de nossa natureza, acabamos perdendo o controle e a consciência sobre essa energia. “E aí nos transformarmos em um vulcão precisando de uma desculpa para explodir, toda aquela agressividade que poderia ser fértil se transforma em uma força destrutiva”, diz Rudá. “Buscamos uma história qualquer que justifique a necessidade desesperada de liberar de maneira burra nosso instinto: basta cruzarmos com alguém que é macumbeiro, evangélico, petista etc.”
“Defendo a humanidade integral. Não preciso deixar de lado meus vícios e ódios para entrar em um templo e comungar com uma divindade. Entre autêntico, como você é, com sua luz e sombra. Somos natureza de contraste e podemos fazer coisas incríveis como somos”, define. Sabedoria ancestral que soa cada dia mais atual.